“Eu ‘tava’ ouvindo Cólera no fone. Deixei a TV no mudo. Só
vi que passava uma notícia sobre Mariana. Abri uma cerveja, nem deu tempo de
tomar o primeiro gole e já tocou o telefone...”.
“Comigo foi meio parecido. Tem dias que ‘tô’ doido pra tomar
uma cerveja. E bem na hora que eu ia sair... tocou o telefone”.
Os dois amigos se encontraram no Bar do Diabolô. Ambos tentavam
entender o porquê de estarem ali e daquele telefonema estranho.
...
No boteco pequeno e fuleiro, com as marcas das incompletas reformas
prometidas por Diabolô, uma pequena TV estava ligada.
Passava jornal... mostrava o indiciamento dos diretores da
Samarco e do acordo que os estados de Minas e Espírito Santo assinaram com a empresa.
Agora, com a criação de um fundo de R$ 20 bilhões, espera-se a recuperação do
Rio Doce em 15 anos.
Então Diabolô simplesmente desligou a TV e tudo começou.
Na vitrola...
(...) Água e ar,
vítimas de contaminação química
Você viu armas feitas
com pedaços de nossos corpos
Você viu sua pele irmã
a preço promocional na vitrine
Eles, não viram nada
além do lucro
Eles, usam sua pele
sentado sobre nossos pedaços,
Eles têm projetos
milionários para exterminar todos nós (...)
Ele colocou o LP “Verde, não devaste!”, de
1989, do Cólera.
...
- Nesses últimos meses, depois que aconteceu a parada lá em
Mariana, ouço Cólera com mais frequência – disse Diabolô.
- Então, coincidência ou não, também estava ouvindo eles antes
de você me ligar. Aliás, que porra de telefonema foi aquele, véio?
“Hey, aqui é o Diabolô, venha conhecer meu bar!!!”
- Hahahaha... que lixo de mensagem!
- Hahahaha... eu gravei uma tele mensagem do bar e fiz o
teste com vocês. Funcionou pelo jeito...
Depois de algumas cervejas um dos amigos pergunta:
- Viu Diabolô, e essa grana aí nessa caixa, você vai mandar
pra Mariana?
No canto do balcão, encostado numa parede, havia uma caixa
de papelão com algumas notas de real. Nela estava escrito: “Mariana”.
- Vai! Na verdade essa grana vai pra conta de um amigo que
mora em Mariana. Aí lá eles se viram.
- Mas rola uma grana boa? – perguntou o outro amigo.
- Cara, aqui no bar não. Mas aí juntamos a grana de outros
bares e assim vamos somando. Um bar... outro bar e mais outro... dá uma
melhorada, né?
- Massa. Tem uma galera envolvida, então?
- Tem... tem sim.
...
Diabolô falava sobre seu grupo de amigos. São vários donos
de boteco numa página de rede social. Após o que houve em Mariana, um dos membros
que era de lá pediu ajuda financeira.
“Somando todo mundo deve dar uma grana legal”. Diabolô
explicou aos seus eternos fregueses como funcionava o esquema.
Depois da conversa, cada um de seus amigos colocou trintão
na caixa.
- Quem colabora ganha um chopp – entregou os copos aos
amigos e continuou a conversa com uma de suas tradicionais perguntas:
- O que cada um de vocês tem a dizer sobre o que aconteceu
em Mariana?
“Samarco fdp” – foi o que ambos responderam e logo beberam
seus respectivos chopps.
- Esperava mais de vocês... – brincou Diabolô e já foi
cantando a letra da música Verde
que rolava naquele momento na vitrola.
Minha vida, sua vida
Nossas vidas dependem
do verde
- hahahaha... boa! Cólera é foda. Depois desse vinil você
pode escolher outro deles que eu não vou me importar.
- Nem eu!!! É bom ouvir esses caras.
Os três cantaram o início da faixa “Medo”:
As vezes tenho medo
As vezes sinto minha
mão
Presa pelo ar
E quando eu olho em
volta
Encontro uma multidão
Presa pelo ar.
As vezes tenho raiva
As vezes sinto que a
ilusão
Me faz recuar
Pois muita gente mente
Pois muita gente te dá
a mão
Só pra empurrar.
...
Naquele momento só estavam os três no boteco. Diabolô começou
a beber conhaque e os outros dois bebiam chopp. “Quem ficou... ficou... quem
não ficou... já era!” – brincou o dono do bar, que olhou pros amigos e fez mais
uma de suas perguntas:
- O que esse som pode fazer por você?
- Ah, sei lá... me deixa bem. Gosto de música pacifista! –
bem na hora começou a tocar “Pela Paz”.
- Que bosta de resposta – interrompeu Diabolô.
- Ah, lembrei! É desse álbum a música “Humanidade”. Curto pra
caralho esse som – disse o outro brother, berrando:
POR TODA HUMANIDADE
POR TODAS AS VIDAS EM
GERAL
Depois de mais um tempo, Diabolô foi até a vitrola e puxou
outro álbum: Deixe a
Terra em Paz”*.
Ao voltar, soltou outra pergunta:
- Ein... o que será que o Redson diria sobre Mariana?
- Porra, que pergunta é essa? Como assim?
- Ah cara, vocês poderiam aproveitar que estão bêbados e
tentar desenvolver a porra de um raciocínio. Isso ajudaria...
- Tá véio, o que você quer que eu diga? Quer que eu cante uma
música deles?
- Você quer que nós cantemos pra você a capela? Que bizarro
cara! – e caíram na gargalhada.
- Porra, tá difícil!! – desistiu Diabolô, virou mais uma
dose de conhaque e foi encher outra.
- Só digo uma coisa pra vocês... – voltou já terminando mais
um copo e com a garrafa na mão.
- Ih! Lá vem...
- Lá vem merda!!!
- Preciso ouvir esse som! Meus amigos, eis a fodástica “Deixe a Terra Em Paz!”
– Diabolô falava de uma música do último álbum de estúdio do
Cólera antes da morte precoce de Redson (fundador, guitarrista e vocalista da
banda):
Bicho gente está
doente
Mata o mundo, mata
gente
Parem as guerras
Deixe a Terra em paz!
- Cara, esse álbum é muito foda... é nesse aí que tem “De ET pra ET”?
- É esse mesmo. Pera aí, já vou colocar essa... – disse
Diabolô.
- Eu não sei o que o Redson diria pra Mariana. Mas pro povo
de Mariana ele diria isso: Forte e grande
é você! – e os amigos repetiram várias vezes essa parte da música.
...
Depois de um tempo, Diabolô olhou os amigos e deu seu
clássico sorriso embriagado. Parou em frente aos dois que estavam escorados no
balcão e disse:
- Terminem de tomar esses copos e vazem que eu vou fechar o
bar.
- Ah, você tá de brincadeira, né?
- Porra! Sério?
Mesmo com a indignação dos fregueses, completou:
- É isso mesmo, virem logo esses copos ae...
Os rapazes viraram seus goles. Diabolô fechou o bar. Colocou
o vinil no encarte. Desligou o som...
Quando estava pra apagar as luzes, olhou pro seu telefone e
lembrou da “tele mensagem”:
“Foi um bom trote” – pensou.
Guardou o dinheiro dos amigos de Mariana e sorriu! Deu mais
um gole de conhaque e foi descansar. “Forte e grande é você... forte e grande é
você” – cantarolou em direção ao seu repouso.
*Nota do Autor: o álbum “Deixe a Terra em Paz” não foi
lançado em vinil. Pelo menos eu nunca vi ou ouvi falar. A utilização dele na
vitrola do Diabolô faz parte da obra de ficção.
** Texto originalmente publicado via Terra Sem Males .
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