terça-feira, 22 de julho de 2014

A olaria

-        





 -          - Ei meu filho, vai buscar lenha pro seu pai vai... papai tá cansado.

O garoto foi até a porta e voltou.

-          - Tá muito escuro lá fora pai... tenho medo!
-          - Ah moleque, deixa de ser medroso, vai logo buscar lenha pra mim. Anda logo...


...


Pai e filho moravam ao lado de uma olaria, num casebre. Chegaram ao lugar após a mulher da família adoecer e morrer. Após seis meses, o garoto ainda estava abalado com a perda da mãe. Viviam em Curitiba. Deixaram a capital após o enterro.

Foram parar no interior do Paraná, região noroeste, em Palotina.  O pai do menino foi trabalhar na fabricação de tijolos e ser caseiro num sítio. Chegou ao interior indicado pelo seu sogro, já que era sozinho... não tinha parentes.

A olaria era longe da cidade. A criança vivia entre a escola e o sítio. Aquele lugar a assustava, principalmente após o por sol.

-          - Não vou sair! – disse assustado o garoto, pra depois correr pro quarto.

Então o homem se levantou da cadeira. Estava na cozinha tomando uma sopa. Era inverno. Foi lá fora na escuridão e buscou mais lenha pra colocar no antigo fogão. “Moleque medroso” – pensou.

A caminhada era curta. Com o lampião aceso tudo ficava mais fácil. Apenas uns metros até o galpão onde as lenhas estavam empilhadas.

Aquele homem foi até lá e nunca mais voltou. Já o menino, adormeceu no quarto.

Na manhã seguinte, o moleque foi acordado por uma amigo e vizinho que trabalhava com seu pai na olaria. Descobriu então que seu ‘chefe’ e principal companheiro fora picado por uma jararaca.

Depois da fatalidade, a criança retornou a Curitiba. Foi morar com seus avós.


...


Os anos se passaram. O menino cresceu.  E no inverno do ano em que completou 18 anos seus avós morreram. Ele não tinha notícia de outros parentes.

A partir daí passou a viver sozinho. E todo inverno era igual. Como se fosse uma maldição, com a chegada do frio, também chegava uma sensação de ter deixado algo pra trás. Algo inacabado. Ele se culpava pela morte do pai.

Depois da morte dos seus avós,  o jovem deixou de ter uma vida normal. No inverno, ele não conseguia sair de casa. Praticamente hibernava. Essa época do ano tornou-se sinônimo de medo, solidão, culpa e tristeza.

E com o tempo... isso só piorou... passou a sentir a presença de mais pessoas ao seu lado. Escutar sussurros. Ficou transtornado. E só acontecia no inverno, após ele ficar completamente sozinho.


...


Após dois anos de sofrimento naquela casa, a vendeu e comprou um apartamento em Pinhais.


...


Agora é o primeiro inverno no apartamento novo. Mora nele desde janeiro. A mudança o fez bem. Porém chegou o frio! A sua prova... “a hora da verdade!”.

Uma de suas armas pra se livrar do que acredita ser uma maldição é escrever. Foi ideia de um amigo do trabalho. “Se começar a sentir algo, escreva. Coloque no papel essas coisas que vive falando! Vai que ajuda!”.


...


“Primeiro dia:  escuto uns sussurros agora. Um som que se confunde. Parece uma reza. É algo que me persegue. Não consigo entender. Se aproxima. Fica mais alta a voz, mas mesmo assim não entendo. Estou fraco e sei que terei pesadelos”. Escreve apenas isso. Chapado de vinho, adormece.

“Segundo dia: novamente os sussurros. Os mesmos malditos sussurros. Eu não aguento mais. Voltou tudo como era! É uma voz. E ela fala bem aqui onde estou. Eu não consigo entender as palavras. O mesmo som se repete. Agora vem de trás da cortina. Bem na janela. Não consigo dormir. Estou sozinho no meu apartamento no nono andar”.

Após terminar essas poucas linhas, guarda os papéis e sua caneta no bolso do casaco. Se agasalha bem e sai do apartamento em direção a rodoferroviária de Curitiba. Consegue pegar o último ônibus pra Palotina.


...


Em Palotina:

O taxista reluta em leva-lo até a antiga olaria. “Aquele lugar é mal assombrado!”, diz o motorista. “Imagino que sim” – responde friamente.

E não mais conversou.

Porém o taxista insiste: “dizem que a chaminé da olaria até hoje não se apagou. Há chamas... mas não há fumaça! Como isso é possível? Também viram um vulto lá! Uma assombração”. 

Não respondeu. 


...


Chega ao sítio! Paga o taxi e entra na área que antes foi uma movimentada olaria. Está apenas com suas roupas de frio, papel e caneta.

Ainda atordoado com a paranoia que passou dentro do ônibus, caminha como um zumbi. Obviamente não dormiu. Teve a pior noite da sua vida.  Está exausto.

Logo avista o terreno. Agora entende o taxista. É só mato. Mato pra todo lado. A estrutura da fábrica de tijolos se deteriorou. Permanece apenas a fachada e a chaminé.  

“Que grande merda é você”.

Da sua antiga casa? Nem sinal. Do galpão? Também não. Imaginou algo bem diferente.  

Mesmo assim, resolve ficar e sentar num tijolo em frente a fachada. Saca seus papéis e sua caneta:

“O que eu falaria pra você? O que você falaria dessa vez? Você não se importa de tirar meu chão todos esses anos? Isso não é diferente de puxar meu tapete. Não sei nem juntar meus pedaços. Eu vivo a me enganar. Vivo sozinho”.

Ao rabiscar essas palavras, alguns tijolos do topo da chaminé se rompem. Um barulho inesperado, por isso assustador.

Com um pouco de receio, se levanta e começa a caminhar pelo que sobrou da olaria.


...


Das recordações no sítio, lembra apenas do seu pai sentado na cozinha, com uma colher na mão e o bigode sujo de sopa. Foi neste momento que ele deu a ordem pra buscar lenha. Outro resgate que as vezes tem, normalmente em sonhos, é de estar perto de um forno a observar tijolos sendo cozidos. Aí sente um terrível calor e acorda molhado. 

Vai ao antigo forno ou o que sobrou dele. O passado torna-se mais presente.

“Olhos. Nostalgia. Você se apressa pra competir com o tempo, porém só pode sair quando estiver ao ponto” – pensa. Percebe que esqueceu de pegar o papel dessa vez. Mas fica assustado ao relembrar que essa frase era exatamente o que seu pai dizia.

“Eu desejo a você o melhor. Então aqui terá o pior” – mais um dos dizeres do seu pai. Fica em estado de choque com a lembrança.

Senta na terra vermelha e compulsivamente chora.


...


O cansaço o pega de surpresa e adormece ali mesmo. Não percebe o tempo passar. Desperta com o frio e com uma sensação diferente!

Mesmo com o sol dando adeus, pega seus papéis e sua caneta.

“Você me pediu pra buscar lenha... eu não fui. Tive medo. Você foi... e nunca mais voltou. O veneno o levou! Você era o lenhador. Agora sou eu. E vivo dividido. A minha vida e a vida que deixei. Sou seu machado afiado e vim aqui pra cortar o mal pela raiz”.


...


Antes que fique totalmente escuro, ele procura um lugar pra fugir do frio. Se arrepende de ter saído de casa bêbado e desesperado. Encontra refúgio entre alguns escombros em frente a fachada da olaria.

Já abrigado, depois de um tempo, começa a escutar um barulho de lenha queimando. Fica em pânico e curioso ao mesmo tempo. Resolve ir até o forno. Está surpreso por não escutar sussurros até o momento.

Em silêncio, vai lentamente em direção ao calor e consegue ver algumas chamas. Aí, pra sua surpresa, surge uma bela mulher! É ela quem coloca lenha no forno.

Chega bem perto, por trás dela e pergunta (ainda duvidando se tudo aquilo realmente é real):

-        -  Quem é você?

Com um grito de espanto ela o recebeu.

-         - Calma! Calma! Desculpe! Não quis assustá-la! Na verdade, eu é que estou assustado. Calma... por favor... calma...

Ela o olha com espanto. Sua garganta está trancada... não sabe o que dizer...

-       -   Calma! Olha... só vim aqui ver esse lugar. Me perdi no tempo e resolvi passar a noite aqui. Eu já morei aqui. Conheço esse sítio. Por favor, acredite em mim, não vou machucá-la.

Após alguns segundos de silêncio, ela meio trêmula e com a voz engasgada pergunta:

-        -  Você já morou aqui?
-         - Sim.

Agora ela o observa com cuidado. Então faz o desafio:

-          - Se você já morou mesmo aqui, então diga: quem sou eu?

Ele trava. Não entende nada.

-         - Olha, me desculpe, mas não sei quem você é... do tempo que vivi aqui infelizmente não consigo me lembrar de nada. É como se tivesse apagado tudo da minha memória...
-         -  Isso não é possível... ninguém simplesmente deleta as coisas da cabeça.
-         -  Parece que é possível. Fiquei uns meses aqui e minha lembrança, pode acreditar, não é das melhores.
-         -  É mesmo... o que aconteceu?
-          - Perdi meu pai aqui... só lembro disso...
-          - Não pode ser! Você é mais um dos garotos da cidade que vem aqui ver se o sítio é mal assombrado. Não tá falando sério.
-          - Eu pareço estar de brincadeira?
-          -  Meu deus... não pode ser... é você mesmo!

Ela o empurra pra mais perto da luz das chamas... pra conseguir ver sua fisionomia com nitidez. Ele tenta explicar...

-          - Olha... meu pai trabalhava aqui...

Foi interrompido em tom de desespero:
  
-          - Você não se lembra de mim? Como você tem coragem de dizer isso? Não se lembra do tempo que ficávamos aqui conversando. Você falava da sua mãe. Sentávamos aqui depois da escola... Nós éramos...

Essa conversa o levou ao colapso. Sente uma dor na cabeça e como se levasse um golpe no queixo, vai ao chão. Desmaia.

Acorda numa casa não muito longe da olaria. Da janela avista a antiga chaminé. Se levanta e tenta caminhar, é derrubado por uma tontura. Com o barulho, a mulher vai até o quarto.

-          - Tá tudo bem?
-          -  Não sei... não entendo... onde estou?
-          - Na minha casa. Na casa da sua amiga. Lembra?
-          - Amiga?
-          - Sim, nossos pais eram amigos. Meu pai te acordou, ele encontrou seu pai morto. Nunca mais vi você. E nunca mais o esqueci.
-          - Você...

E mais uma vez o passado vem como um furacão e o devasta. Volta ao seu sono profundo. Desta vez no seu sonho lá está seu primeiro amor.

Então acorda. Se sente protegido. Aquecido. Caminha pela casa e vê o fogão a lenha. Vai até ele e se aquece:  

-          - Oi – diz ela ao surgir repentinamente.
-          - É você mesmo?
-          - Sim.
-          - Como isso é possível? Por que está aqui?
-          - Eu moro aqui. Meus pais morreram faz dois anos e eu fiquei aqui.
-          - O que você faz?
-          - Estudo.
-          - Mas... por que o forno da olaria?
-          - As pessoas acreditam que a fábrica é mal assombrada. Na verdade eu acho graça. Apenas faço fogo ali. Meu pai fazia. Eu só continuo. É pra lembrar daquele tempo! Da minha vida. Da minha família. De você. Dos nossos pais se divertindo. Você não lembra de nada mesmo?
-          - Não...  a minha vida inteira tentei esquecer o meu passado aqui. Me culpo pela morte do meu pai. É estranho...
-          - Quando você chegou aqui, já estava frágil. Abalado pela morte da sua mãe. Aí veio a morte do seu pai... então te levaram...
-          - Meus avós...
-          - Sim...
-          - Pois é...
-          - Mas mesmo assim. Também é estranho pra mim. Não sei te dizer. Primeiro meu pai, depois minha mãe.... eles se foram. Fiquei sozinha... e você passou e ficar presente no meu pensamento. Só você!


...


Após o reencontro, ele vendeu tudo que tinha em Pinhais e voltou pro interior. Vem inverno... vai inverno... e eles permanecem ali.

Nas noites mais frias, o casal vai até o forno... resgata os bons momentos e brinda a nova vida.

E nesta noite de inverno, na antiga olaria, ele olha pra ela e diz:

“Você me trouxe a vida. Passei a acreditar que não existe nada mais lindo que o sorriso de uma mulher. Vou viver pra fazer você sorrir. Ver você feliz é algo que me fortalece. Quando me resgatou,  me purificou. Ver você é como ver a paz. Você carrega uma luz que eu quero seguir. E foi isso que me  trouxe aqui. Sua força se propaga pelo infinito. Agora você me aquece. E eu me sinto iluminado”.


* Foto: Bruno Duarte Sampaio  
*Texto originalmente publicado no Caos Descrito