“No momento não tem condições”, disse Pedro Moraes a um dos
seus advogados da empresa, que também é seu afiliado.
Aquilo bateu como uma dor de dente para o jovem advogado que
estava cansado de ver e ouvir sempre as mesmas coisas.
Daniel queria melhorar as condições dos trabalhadores da
empresa do seu padrinho. Isso geraria um investimento, porém a resposta
negativa não era coerente, já que havia tanto processo trabalhista nas costas
do empresário, que era mais benéfico o patrão atender a proposta do jurídico.
“As coisas doem!” – refletiu Daniel sobre algumas decisões
no seu dia a dia.
A própria sociedade dá sinais de que o sistema falhou. O
grau de “sanidade padrão” deixa todos insanos.
...
“Você já deu sinais de defeito de fábrica? Tipo os defeitos
que você critica?”.
...
Daniel ligou o rádio enquanto estava parado num
engarrafamento a caminho de casa. “Moralismo e Ética Profissional” é a chamada
da entrevista. No momento já rola um bate-papo com participação do ouvinte.
Maxis Gallenger é o entrevistado.
O convidado fala sobre como identificar os próprios
defeitos. Agora entre um ouvinte:
“Você já deu sinais de defeito de fábrica? Tipo os defeitos
que você critica?” – disse o ouvinte. “Claro!” – respondeu Maxis: “Preste
atenção! A questão é não fazer igual aos problemas que critica” – “Mas doutor!
Acho que a sociedade é tão hipócrita...” – “Calma” – interrompeu Gallenger: “O
ideal é quando você identificar o problema, corrigir. Lembre-se: não é porque
ninguém é perfeito que devemos aceitar a hipocrisia. Concorda comigo?” – “É,
mais ou menos”.
“Ok! Para fechar, mais alguma coisa que gostaria de dizer?” –
diz o jornalista que está intermediando o bate-papo ao ouvinte.
“Só mais um coisinha. Na verdade, ninguém escuta o barulho
do seu zíper. Eu mesmo já fiz o que critico quantas vezes! Quantas vezes! Que
isso não se repetiria ou aquilo eu jamais voltaria a fazer. Mas aí, quando
menos eu espero, lá estou eu fazendo. E não é que as coisas só se repetem?” –
disse o ouvinte, se despediu e desligou.
...
Agora o advogado coloca seu pendrive no som do carro e escolhe
uma música.
“O ouvinte pirou legal!” – pensou Daniel. Foi uma coisa
normal (a participação do ouvinte no programa de entrevista), mas houve uma
perspectiva diferente no que foi falado. Chegou até a incomodar.
Aí sem mais nem menos Daniel leva um susto com o buzina que
veio de algum carro atrás dele. Percebe a cagada que fez. “Mas que cara sem
paciência”, pensa. Então segue o fluxo...
Após alguns minutos Daniel mete a mão na buzina e faz
barulho porque o carro da frente estava parado enquanto o fluxo continuava. “Que
filha da puta. Sai da frente! Vamos porra! Anda com essa merda”, esbraveja o jovem
advogado.
...
Por fim o trabalhador chega em casa. Lembra que seus
vizinhos também são trabalhadores. Se coloca no lugar de todos os
trabalhadores. Com seus defeitos e seus problemas. Eles passam entre si, se olham, se cruzam,
trocam palavras. Se sentem iguais por um momento. Como a felicidade: momentânea.
E todos eles se conformam que o amanhã já nasce desigual. E
com muito moralismo e ética profissional, se sentem sozinhos.