Guto
Berg abre mais uma vez o jornal Gazeta do Povo, coloca o diário em cima da
mesa. Uma mão coça a cabeça e a outra se ergue para chamar a garçonete. Ele
está num café, são 7 da manhã. Visivelmente inquieto, pede um café puro. Reflete:
“os bons pagam pela sua competência” – faz um sinal de negativo com a cabeça e
acende um cigarro.
O
Paraná é o estado mais perigoso para os jornalistas no Brasil. Dos oito
assassinatos no país, três foram em território paranaense. O último mês de 2012
marcou um fato de repercussão nacional: quatro jornalistas da Gazeta do Povo
foram ameaçados após matéria investigativa em que policiais estão envolvidos.
Algumas
informações na mídia mostram jornalista sendo processado até por texto
ficcional, como caso ocorrido no Sergipe.
“Morreram
mais jornalistas no Brasil em 2012 que no Iraque, Gaza e Afeganistão” – chamada
no Portal Imprensa que explica o risco de ser jornalista em território nacional.
O Brasil é quarto no ranking mundial de insegurança para a categoria.
Também
um estudo divulgado este mês pela Campanha Emblema para a Imprensa (PEC, sigla
em inglês), mostra que este ano foi o mais sangrento para os jornalistas desde
a Segunda Guerra Mundial.
Enfim
Guto Berg recebe seu convidado:
- Bom
dia filho!
- Bom
dia pai!
Berg
é jornalista, conhecido mundialmente. Profissional atualmente muito visado,
pois tem um blog pessoal que faz análises da imprensa. Também é palestrante e
viaja todo o mundo. Quem chega para a conversa é seu filho mais novo, 30 anos,
policial militar. A relação dos dois sempre foi tensa: o caçula da família sempre
bateu de frente com o pai. Se o jornalista é libertário, seu filho é conservador.
-
Você tem acompanhado o que vem acontecendo com alguns jornalistas aqui no
Paraná meu filho?
-
Não! Ando numa correria danada, não dá tempo pra ler nada...
-
Pois é, sei como é...
-
Sim... E como sabe – respondeu irônico.
-
Quer alguma coisa: um café? Um doce? Um cigarro? – sorriu irônico Berg, pois
sabia que seu filho odiava tabaco.
-
Não. Na verdade estou com muita pressa. O que você quer afinal?
-
Queria apenas conversar sobre essa situação, entender o que está acontecendo.
Matérias investigativas denunciam corrupção na polícia. Não é nenhuma novidade.
Sei que você sabe se cuidar e que isso não tem ligação contigo. Mas me
preocupo. Achei também que você soubesse
de algo...
-
Não. Não sei. Já disse.
-
Tudo bem.
- É
só isso?
-
Sim. Ah... Outra coisa. Não comente com ninguém que conversamos sobre isso. Ok?
- Só
isso mesmo?
-
Sim.
- Ok.
Guto
Berg não entende o caminho oposto escolhido por seu filho. “Parece que ele
sempre quer me irritar com essa arrogância e esse conservadorismo!”. O
jornalista muitas vezes esteve ausente e não acompanhou o crescimento dos seus
filhos. Porém o mais novo não trata Berg com respeito. “Esse cara respeita mais
a hierarquia policial, as ordens de superiores ou de políticos, do que um café
com seu próprio pai” – abaixou a cabeça e apagou seu cigarro no cinzeiro.
- O
que seu pai queria? – perguntou o parceiro de trabalho do PM.
-
Besteira dele.
-
Tipo o que?
-
Aquelas histórias dos jornalistas lá...
Os
dois seguiram na viatura rodando por Curitiba.
“Me
parece que a comunicação não pode atingir alguns pontos dentro das camadas
hierárquicas do poder. Há um vespeiro de escravos do crime prontos para agir.
Vão contra a própria sociedade” – rascunhou Guto Berg. Em seguida levantou e
foi em direção ao caixa pagar a conta. Estava pensativo: “como pode! A polícia
sendo investigada, o GAECO no caso, a opinião pública falando sobre isso e meu
filho não sabe de nada?” – fez um sinal de desaprovação, pagou sua conta e foi
pra casa.
O
outro PM, parceiro do caçula do jornalista, enquanto rondavam pela cidade,
parou na tradicional ‘padoca’, ponto em que sempre fazem uma pausa. O filho de
Berg foi até o balcão e seu companheiro foi ao banheiro. Lá fez uma ligação:
-
Seguinte: o Berg anda sondando.
-
Qual dos dois?
- O
velho.
-
Certo. Deixa comigo. E o soldado?
-
Esse é sossegado. É dos nossos.
-
Positivo.
Guto
Berg prepara sua palestra quando o telefone toca:
-
Alô.
- É o
Berg?
-
Sim... Quem é?
- É o
Berg, aquele jornalistazinho de merda?
-
Quem está falando?
- Não
interessa. O negócio é o seguinte, cuidado com o que anda procurando por aí...
-
Quem é que está falando? – quase gritando e nervoso.
-
Cuidado com tua família!
-
Como é que é?... – linha cortada.
Não
foi a primeira ameaça que o jornalista recebeu na vida. O que incomodou foi que
o atual contexto o deixou ainda mais assustado!
“Hoje
vivemos em um período, na comunicação, que me assusta! Vocês podem achar
estranho eu falar isto. Mas quando os “justiceiros” (fez o gesto de aspas com
as mãos) protegem os coronéis do novo milênio, significa que o sistema
autoritário que vigora em nossas vidas está cada vez mais legitimado. E isso
através da imposição do medo, do abuso do poder econômico. Se antes havia bandidos
contratados, hoje alguns deles são concursados e abrem as portas para que a
sociedade se torne refém de si mesma!” – introdução de Guto Berg para sua última
palestra antes de ser assassinado misteriosamente na porta da sua casa.