CAPÍTULO I
Já estou
velho, sou de 1945. Muitos fantasmas percorrem meus pensamentos. Vim dos EUA
pro Brasil na metade da década de 70 com minha esposa. Hoje sou viúvo, mas tenho
uma linda família, com dois filhos bem diferentes: minha filha olha pra mim com
respeito, tem inveja dos anos que eu vivi, dá época que curti, das histórias
que contei; ela sempre as escutou com muita atenção. É uma linda mulher, lembra
sua mãe em fisionomia, mas puxou pra mim no quesito rebeldia. Está agora com um
cara ao seu lado, confesso que sinto muito ciúme, mas o que posso fazer, felicidade
é o que importa. Tivemos ela em 1982, quando já estava bem estabelecido no
Brasil.
Também olho
pro meu menino, ele está ali, com cara de depressivo, é estranho, ele é feliz ao
se parecer triste. Chama-se emo todo esse visual, mas confesso não entender
muito bem, assim como ele também não entende as coisas que eu vivi. Ele não se
interessa pela história, praticamente acha uma bobagem eu contar que tomei LSD
em praça pública vendo o Grateful Dead. Se disser que estive em São Francisco
no auge da cultura hippie, pra ele não faz diferença. Talvez o grande intervalo
entre os dois filhos, quase dez anos, gere essa confusão. Meu menino veio em
1989, é outra visão de mundo. Há um grande choque cultural entre eles, imagino.
Poucos
minutos atrás, caminhava com dificuldade pelas ruas históricas de Morretes,
perto da cidade onde moro, Curitiba. Minha filha e seu namorado resolveram me
levar pra comer um barreado (prato típico da região). Comigo estavam o casal e
meu filho. Depois do belo prato típico,
visitamos lojas. Eles queriam lembranças do passeio na cidade histórica. Cada
um foi pra um lado, como eu estava cansado disse que preferia sentar na praça,
ao lado do rio que corta a cidade, pra observar a paisagem.
Minutos ali
foram suficientes pra observar uma loja: “essa loja lembra um pouco aquelas em
que comprava lembranças pra Luz (nome da minha ex-mulher) em São Francisco!”.
Sorri sozinho. Olhei pros lados na certeza que alguém estava a me observar,
porém hoje em dia as pessoas não observam umas as outras, elas simplesmente
passam... seguem e não valorizam peculiaridades, ainda mais de um velho como
eu.
Então dou
uns passos a mais e enfrento minha dificuldade respiratória. Entro no
estabelecimento. Passo duas prateleiras e me deparo com o passado. Fui pego de
surpresa! “O que é isso aqui?”, me pergunto horrorizado. Como uma enchente que adentra
uma pequena cidade, fantasmas invadiram minha sanidade. Tudo que tentei apagar
em décadas aparece subitamente. “Eles me encontraram!”, mas dessa vez eu fui de
encontro e bati na frente de um trem que nunca saiu do túnel mais escuro e
sombrio dessa minha vida, que vai, a toda velocidade, em direção ao
subterrâneo.
...
- Pai... o
senhor está bem? - Abro os olhos e vejo que estou nos braços da minha filha.
- O que
aconteceu?
- Você
desmaiou aqui na loja. O que houve? Não está se sentindo bem?
- Me ajude a
levantar minha filha, preciso encontrar algo.
- Como assim
pai, do que está falando?
- Eu estou
bem querida, só me ajude...
Então meu
filho e o namorado dela me ajudaram. Apoiado neles fui até a prateleira onde
estava aquele objeto que me nocauteou. “Fui um belo soco no queixo” – pensei
com meus botões ao ficar frente a frente com aquele fusquinha amarelo.
- Pai... o
que é isso? Por que está parado em frente a este fusca? – minha filha sempre
preocupada.
- Preciso
comprar isto minha querida.
- Então
compre – ela chamou a vendedora que havia me socorrido anteriormente. A moça
chega com um olhar ‘macio’ e calmo.
- O senhor
esta melhor? Em que posso ajudá-lo?
- Pai...
esse moça te socorreu. Quando vimos que o senhor não estava mais na praça,
ficamos desesperados. Chegamos aqui e ela cuidava de ti...
- Minha
filha (peguei a mão dela), muito obrigado. Não sei como agradecer. Talvez uma
forma seja comprar esse pequeno objeto. Sei que tem mais valor do que esse
pobre e velho ancião que você acabou de ajudar. Por favor, vou levar esse fusca
amarelo – ela sorriu. Achou um exagero minha fala. Pegou o objeto, foi até o
caixa e embrulhou. Dei dinheiro pro meu filho ir lá paga-lo pra mim. Depois
disso eles me levaram até o carro:
- Vamos
passar no hospital – disse minha filha ao seu namorado, que dirigia.
- Não meus
queridos, não precisa. Já me sinto melhor. Podemos ir. Sigamos viagem pra casa,
vou descansando... só isso que quero no momento.
- Pai, você
não quer falar nada sobre o que houve? – ela perguntou preocupada.
Fingi que
não ouvi e fechei os olhos como se estivesse a dormir. Abracei meu ‘presente’
com força, sei que é isso que preciso a partir de agora pra enfrentar meus
fantasmas. Está escuro, desço o túnel. Parece que o fim da linha se aproxima.