quinta-feira, 3 de junho de 2010

Soul Brain – Olhos para seu cérebro



Mais um dia em que acordo e divago em frente ao espelho. Esse excesso de loucura não pode ser questionado, até porque prefiro acreditar que todo mundo faz algo parecido. Algumas vezes tem gente que não admite, mas que faz algo quando não tem ninguém vendo...

Seja lá como for, me visto e caio fora da minha casa. Hoje faz sol e tenho alguns afazeres.

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“Tenho que enfiar esse chip nesse cara de novo?” – “Sim” – respondeu meu patrão. É natural que eu faça o trabalho sujo, afinal, criei muita tecnologia por aí, agora todos tiram proveito da minha paciência. “Pelo menos sou bem remunerado” – penso com meus botões.

Aliás, se estou sendo bem remunerado, é bom que eu faça o trabalho bem feito. Tem gente que não recebe um salário digno e faz bem feito. O pior é que tem gente que faz o trabalho que um ‘tubarão’ jamais se submeteria, e se aluga, pensa que está no mesmo patamar dos seus mandatários. Essa ilusão é comum, digna de zé ruela mesmo. Pra isso serve a expressão: “gozar com o pau do outro!”.

Isso são fatos, desde que o mundo é mundo existem pessoas que se enganam com seus afazeres, acham que não são substituíveis! Esse tipo de coisa. Aquela famosa frase: “dê poder ao homem que saberás quem ele é”. Olha! Que filosofia essa não? Na verdade já está na hora de me concentrar nesse cara aqui... vamos voltar ao trabalho.

Faz algum tempo que criei um chip cerebral, o chamo de ‘Soul Brain’ – uma homenagem aos Bad Brains, uma grande banda que existia num tempo remoto desse novo mundo. O ‘Soul Brain’ eu implanto no cérebro de um ser como este que está deitado nessa maca.

Olho pra esse individuo e não consigo acreditar que está aqui novamente! De qualquer forma, daqui a pouco ele vai acordar e terei que entregar seu controle pra mais um idiota que vem adotá-lo.

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“Aí! Que dor de cabeça, o que aconteceu? Quem é você?” – “Olha... recomendo que você cale a boca e fique aí deitado, senão vou desligá-lo... ok?” – ele consentiu. Não tenho muita paciência com esses ‘ships’. Esse nome é uma mistura de shit com chip, já que só servem de brinquedo pra alguns bem aventurados financeiramente.

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Vou explicar aonde trabalho:

Hoje existe um centro como esse que eu coordeno. Aqui pegamos pessoas que estão mortas nas ruas, trazemos pra cá e implantamos o ‘Soul Brain’. Então existe um chip pra cada tipo de cadáver. Esse que está aqui foi encontrado numa viela no meio do nada com o rabo arrombado. Os estupros acontecem com muita frequência, não sei o que as pessoas tem na cabeça... mas tudo bem...

Então esse cara estava morto, estuprado. Agora está aqui, vivo, com um chip. Porém ele é controlado. Esse controle vai pra quem vier adotá-lo. Normalmente vem um multimilionário e dá de presente esses seres idiotas pra seu filho. A situação hoje é essa, nós fabricamos prazer artificial pra todo mundo, mas não é um simples brinquedo, são pessoas que de certa forma ‘ressuscitamos’.

O que isso contribui pra humanidade. Não sei, mas veja o caso desse ‘ship’: ele era controlado por algum idiota que o usou pra fazer algo, mas se meteu com outro ‘ship’ que também era controlado por outro idiota. Bom, idiota no controle, sabe como é... tem idiota que se diverte estuprando alguém... sempre foi assim... mas hoje não existem tantos estupradores, pois já rastreamos o ‘ship’ que estuprou e explodimos o filho da puta.

Este é o panorama: tem marido que vem pra pegar uma amante aqui, com o controle, fica trepando até não aguentar mais, depois explode o ou a ‘ship’. Tem playboy que pega um ‘ship’ pra ser seu avião: o controlado vai às bocas pegar crack, pó, heroína, LSD, bala...

São muitas as variedades. O fato é que conseguimos controlar o sistema. Tenho aqui políticos ‘ship’. Polícia ‘ship’. Tudo hoje é ‘ship’. Graças a mim, que criei o ‘Soul Brain’. Então eu sei de tudo, meu computador de bordo é simplesmente melhor que a cabeça do professor Xavier, do pré-histórico X-Man.

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“Boa tarde! Vim buscar meu ‘ship’” – disse uma senhora. “Está aqui seu controle senhora, é a primeira vez que vem buscar?” – “Não” – “Passe sua digital, por favor?” – ela passou – “Ok! Aguarde naquela sala que já estará em suas mãos!” – e ambos sorrimos.

Veja como é a vida, observo esse ‘ship’, ele acabou de ser estuprado e agora vai com essa senhora pra algum lugar. Ele não tem sentimentos, mas vai transar até quando ela quiser. Vai fazer tudo o que ela pedir. Eles não sabem manusear algum controle, não estão programados pra roubar esta senhora, estão à disposição dela. São humanos domesticados, com um chip socado no cérebro.

De vez em quando penso em mudar o nome do meu chip, já que o Bad Brains era uma banda tão ligada à liberdade! Algumas vezes fico com a consciência pesada. Mas é a vida, o nome pegou! Fazer o que...

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O problema da atual modernidade é que os ‘ship’ estão por aí, se antigamente você pegava seu celular e mandava uma mensagem pra uma gata, hoje o cara manda seu ‘ship’ buscá-la e levá-la até você. Muitas vezes a mulher acaba se interessando pelo ‘ship’ do cara, mas aí acontecem negociações extravagantes. Por exemplo: uma vez um senhor estava interessado numa mulher, ele tinha um ‘ship’ muito educado, mas não que o ‘ship’ realmente era educado, mas sim porque quem o controlava tinha boas maneiras. Porém como a timidez e a falta de humanidade em meio a tanta tecnologia deixam as pessoas mais retraídas, esse senhor mandava seu ‘ship’ conversar com a mulher.

Um dia essa mulher, mesmo sabendo que o controlador tinha uma boa educação, enjoou de ficar nessa embromação e resolveu levar o ‘ship’ até sua casa. O controlador ficou puto, mas sendo ele que estava no comando do ‘ship’ e se vendo impotente de chegar pessoalmente nessa mulher, resolveu deixar rolar. Veja só aonde chegamos: esse senhor ficou vendo o seu servo transar com a mulher que ele gostaria de transar.

Se você me perguntar: “mas como você sabe disso?”. Nós vemos tudo que seu ‘ship’ vê, então sabemos das mais diversas histórias. Desde acontecimentos banais como a esposa se apaixonar pelo ‘ship’ do marido e roubar o controle dele pra ambos fugirem, até o marido se apaixonar pelo seu próprio ‘ship’ e abandonar sua própria mulher. Acontece de tudo por aqui meu chapa.

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Esses dias mesmo estava eu num bar...

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Hoje os bares são diversificados, lá estão os ‘ship’ e os humanos misturados. É estranho, tem gente que não vai pra noite e manda seus cervos. Pessoas não vão trabalhar e mandam seus cervos. Está tudo assim, quem está no poder, tem como substituir-se, sem deixar que seus olhos estejam onde precisa.

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Bom... lá estava eu no bar. Fui pegar uma bebida, depois de várias bebidas. A pessoa que estava atendendo era uma ‘ship’. Como eu sei? Eu os criei. Imagino eu que o atendente deva estar se divertindo em algum lugar e só observando como as coisas acontecem. Porém nem sempre os olhos captam tudo. É fácil tirar proveito. Então ao invés de comprar minha bebida, questionei: “Minha bebida está demorando por quê?”. O cara que estava ao meu lado também questionou. Quando chegou a dele eu repeti a pergunta e ele reafirmou. Como o atendente é um ‘ship’ e o real não está lá, ele nem deu bola, ou seja, nesse caso o cliente não tem razão. Fui até o banheiro e rastreei aquele ‘Soul Brain’ e o explodi.

Hoje a revolta ao descobrir um ‘ship’ em meio a situações cotidianas é tamanha que a situação perde o controle. Então também rastreei os ‘Soul Brains’ que faziam a segurança do local e explodi todos. Não é uma explosão como aquelas de filmes, simplesmente o ‘ship’ queima e se decompõe. Isso desencadeia uma grande revolta, as pessoas começam a saquear as casas de shows e normalmente os donos dessas casas perdem o controle da situação. O problema torna-se maior do que jamais imaginaram. Eu posso fazer isso, pois posso identificar. Atrapalhar todo esse sistema elitizado faz parte das minhas teorias.

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Esse mecanismo de rastrear ninguém sabe que eu faço. Na verdade, depois de tantas vezes que tentaram me pegar, já mudei minha face. Tenho meus próprios ‘ships’. Alguns dias atrás eu estava no quarto e peguei o controle de mim mesmo. Da minha imagem real. Aquela que é procurada por séculos.

Então a botei nas ruas. Foi estranho me ver caminhar. É legal essa sensação, até porque eu consegui reproduzir a realidade. Você vê o que seu ‘ship’ vê pela tela de uma televisão. Tem gente que prefere ter um microchip instalado no seu cérebro, aí você realmente enxerga, através da sua própria visão, o que seu ‘ship’ vê. Através do seu controle você pode programar seu olho direito, por exemplo, pra ver o que seu cervo está vendo e seu outro olho, mantém a normalidade.

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Tem gente que põe seu ‘ship’ pra tomar um ácido. Daí controla a chapação com seu aparelho. Já vi casos de overdose no ‘ship’. Também já houveram casos de overdoses também do controlador, mas aí foram causados por cocaína, heroína, crack... ou seja, drogas mais pesadas. Por isso quando se instala um microchip deve haver muita disciplina.

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Então minha imagem caminhava em busca de um cigarro pra fumar. Hoje eu não fumo, mas meu ‘ship’ fuma bastante. Caminho e solto a fumaça, observo pela minha tela. Como sou um cara precavido, coloquei outro ‘ship’ perseguindo-me. Abri minha tela em dois planos. Uma observava o que eu observava e outro me observava.

E subitamente o plano principal ficou escuro e me vi sendo atingido por um raio. Voltei a imagem inúmeras vezes e fiquei me vendo levar um raio na cabeça. Estranho, mas já me vi morrer muitas vezes. Seja lá quem quer me matar, ele ou ela já me viu morrer tantas vezes que deve estar muito puto.

Continuei a observar as minhas chamas. Ninguém passou pra ver ou ajudar. Acho que a humanidade está de saco cheio de mim. Devem pensar: “mais um raio cai na cabeça desse cara? Porra... quando ele vai morrer?”. As manchetes dos jornais não são mais as mesmas, antes eu ficava na capa, hoje nem uma chamada.

Só me resta continuar a desordem, afinal foi pra isso que eu vim. Não digo que vou parar se um raio cair na minha cabeça, pois muitos já caíram. Também não digo que um raio não cai no mesmo lugar, até porque sempre cai na mesma pessoa. Eu.